A morte do rebola caixotes


Sentir medo é uma coisa natural que quase ninguém reconhece ter ou ter tido. Sentir aquele medo muito forte, aquele medo que nos persegue, aquele medo que nos não dá descanso é mais raro acontecer, mas acontece ...e eu soube disso em circunstâncias pelo menos pouco comuns.
 
  A história conta-se em poucas palavras mas todas elas têm pesos subsequentes que vão para além do seu próprio peso inicial e esse peso suplementar é devido, neste caso, ao arrasto do medo que o remorso por ter tido medo acarreta.
 
  O rebola caixotes era assim chamado porque o pai dele era o rebola caixotes, os irmãos dele eram os rebola caixotes e eu nunca soube porque tinha tido lugar essa alcunha. O homem, o pai dos rebola caixotes, metia-se muito nos copos - era naquele tempo em que havia tabernas como hoje há snack bares - e a família era talvez só por isso uma desgraça completa.
 
  Todos, menos a senhora Maria, que era quem tentava fazer alguma coisa daquela família. Pouco conseguia, embora se esfalfasse a trabalhar, vendendo leite de porta em porta, nesse tempo, fazendo limpezas, sendo muito querida pelas senhoras da classe média que lhe lastimavam a sorte, enfim...era uma boa senhora.
 
  Ainda tenho gravados os seus gritos de dor quando lhe meteram o filho no caixão de madeira simples pintada de negro:"Querem meter o meu menino nesse lugar tão escuro..." gritava e isso faz-me sempre lembrar o irmão dele quando chegou ao pé de nós atropelando as palavras:
  "O meu irmão...desapareceu...caiu nas funduras!" E este termo funduras faz-me lembrar por sua vez o negro do caixão e as palavras da senhora Maria: " Querem levar o meu menino nesse lugar tão escuro!"
 
  Ora o escuro é de ter medo, e era ainda mais de ter medo naqueles meus tempos de infância. Enquanto que os adultos por vezes se isolam no escuro para pensar, as crianças têm pavor do escuro."Ainda veio à de cima, mas depois desapareceu..." disse o irmão dele, mais velho, até mais velho que nós, crianças que brincávamos no cais. Mas ele não sabia nadar e nós sim...isso sabíamos todos os três, mas ninguém se conseguiu mexer dali e ir lá onde ele apontava ter desaparecido nas funduras o seu irmão.
 
  Ele deve ter dito o mesmo durante poucos minutos, talvez dois, ou mesmo três, até que um homem que passava perguntou o que se passava e saiu dali a correr para o lugar onde o outro lhe apontava e para onde nós fomos os quatro.
 
  Ainda fez dois ou três mergulhos, o homem, a água estava escura, havia limos por todo o lado, gritou por ajuda e vieram mais dois homens e depois mais, muitos mais. A nós ignorou-nos, éramos crianças e ele era adulto, e só falava com o rebola caixotes para ele confirmar se era ali mesmo ou mais ao lado que o irmão tinha desaparecido. E o rebola caixotes mais novo não apareceu nem foi encontrado durante muitas horas. Estava lá nas funduras...
 
  Foi apanhado por redes que percorreram o braço da ria de alto a baixo e estava bem morto, até tinha uma ferida numa orelha, ao que disseram por ataque de caranguejos. Depois levaram-no naquele caixão escuro, em cima de um carrinho de mão, daqueles grandes que havia que davam para transportar corpos.
 
  Ora o medo, aquele medo grande, esteve presente na altura em que nós os três (quatro contando que o rebola caixotes que não sabia nadar) ficámos paralisados e sem saber o que fazer quando era evidente que o que deveríamos ter feito era aquilo que o homem fez logo em seguida: correu, mergulhou, procurou encontrar o moço lá nas funduras.
 
  Mas nós éramos crianças mas nem isso serviu para nos desculparmos por ter tido medo e não termos tomado nenhuma atitude. Entre os três ainda dissemos que se calhar nos acontecia a nós o mesmo que aconteceu ao homem, não encontrávamos nada. Mas nós nem na água tínhamos entrado precisamente com medo de encontrarmos alguma coisa, o rebola caixotes morto.
 
  Depois, deixámos de falar sobre isso, aí dois ou três dias depois e continuámos a nossa vida de crianças. Mas eu, pela minha parte, descobri que o que me tinha metido medo era o lugar...ali podia haver qualquer coisa que puxasse as pessoas para baixo e eu não queria ir para a escuridão como já tinha ido o rebola caixotes.
 
  E, agora que penso nisso, acho que levei bem a sério a maldição do lugar: voltei poucos dias depois ao mesmo cais, nadei tão normalmente quanto possível mas sempre longe daquele local onde tinha desaparecido o rebola caixotes. E mesmo quando me distraía, noutros dias, e quando pensava que estava sobre aquele local, o pânico levava-me a nadar fortemente para outro lado.
 
  E quando alguns limos se me colavam às pernas era verdadeiro terror o que eu sentia: nada, nem mesmo a visão dos limos verdes colados me levava a pensar que não fosse o espírito do rebola caixotes a puxar-me por me querer também com ele. Eu, e os outros dois meus amigos tínhamos tido medo e pelo menos a mim esse medo misturado com os remorsos de não ter feito nada fazia-me ainda ter mais medo e ter sempre medo por ter tido medo.
 
  Uma criança não tem que ser adulto e saber ter reacção para salvar pessoas...mas custa muito pensar que aqueles dois minutos, ou três, poderiam ter salvo aquela criança se nós não fossemos crianças e não tivéssemos tido aquele medo.
 
  A senhora Maria que me perdoe, lá no Céu onde deve merecidamente estar, por eu ter sido naquela altura apenas uma criança!




22/09/2007
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