No dia em que morri

No dia em que morri chovia torrencialmente depois de um longo período de seca que assolou o país. Embora eu ache que foi por eu estar de partida que começou a chover não tenho no entanto garantias disso, mas e sempre humildemente como é meu timbre acho que "ele" ouviu as minhas preces e "ele" sabia perfeitamente que eu sempre tive a ambição de ser enterrado num dia de tempestade, vendo todo o pessoal acompanhante atolado em lama e reduzido em número por alegadamente ter familiares doentes, desculpa que serve sempre, até para uma balda a um funeral.

Mas apesar dessa minha pequena alegria, esse dia foi um dia triste, chato, aborrecido e complicado para uma série de gente. Os meus amigos não estavam a contar com isso, na sua grande parte, mas à custa de muito esforço lá começaram a descobrir que eu nos últimos tempos andava estranho para logo acrescentarem que apesar de pensarem nisso agora (naquela altura) nunca tinham pensado que eu fosse capaz de fazer uma coisa dessas, e diziam o "dessas" de uma forma ciciada como que ao dizerem que eu me tinha finado, escafedido, abalado, entregue a alma etc. trabalhassem com uma palavra proibida e fosse obrigatório jogar mão de uma metáfora e ainda por cima ciciá-la.

"Porra, morri, caraças- qual é o problema em dizerem isso de uma forma directa, sem subterfúgios, sem lamechices condoídas?"- Estive eu para dizer deitado naquela coisa almofadada mas pensando melhor não estive para me chatear. Ao fim e ao cabo foi precisamente para mostrar aos meus amigos e ao mundo que é possível um indivíduo como eu, que ama a vida, que dá saltos de contente quando a lotaria sai a outro, que anda sempre de sorriso pregado na boca, que ultrapassa todas as dificuldades com um sorriso espelhado na face, que é possível, dizia eu, uma pessoa assim morrer, finar-se, bater a bota. Até é fácil.

É claro que não vou explicar aqui como aconteceu a coisa mas devo dizer que foi do género um "ar que me deu". Num momento estava vivo e no seguinte estava morto, o que no meu caso não é o mesmo que estar morto morto, não sei se sabem: os direitos não são iguais e um morto nas minhas circunstâncias, com a minha vida e a minha idade é em termos hierárquicos inferior a um morto qualquer, daqueles que morrem por razões normalmente fundamentadas pela idade, pela doença, pela violência urbana ou campestre, por acidente, etc.

Eu morri de tédio, o que me coloca numa posição ainda indefinida mas desde logo catalogada como condição inferior a um morto normal.

É uma questão de estatuto e o tédio ainda não é aceite como patologia mortal no livro dos mortos. Tem lá uma alínea, num sub capítulo de um capítulo que refere os indefinidos, com uma fraseologia um bocado aldrabada mas nota-se perfeitamente que o legislador não sabe mesmo o que fazer com as mortes por tédio e outras que estão no mesmo capitulo. Espero que eles resolvam a questão brevemente...

Mas, e voltando ao morto frio que sou eu, se os meus amigos estavam tristes e lamentavam o acontecido já a minha mulher partia o côco a rir: não é porque estivesse contente com isso, tinha de pagar o funeral, tinha gasto ainda uma pequena fortuna em rissóis e bolinhos daqueles em miniatura e ficava viúva, só, embora ficasse com a pensão (uma ninharia).

Mas fartava-se de rir porque era talvez a única que não acreditava que eu estava morto. Dáva-me beliscões, compunha-me a gravata e piscava-me o olho, de quando em vez mostrava-me um pastel de nata ou um calicezinho de bagaço e sem se descompôr lá se virava para uma visita mais comovida e deixava cair algumas lágrimas por simpatia. Mas aquilo era coisa que lhe passava depressa e era só para não desfazer o gozo daquilo que ela considerava ser uma brincadeira minha.

Ainda quis falar com ela, explicar-lhe que não estava no gozo, que aquilo era mesmo a sério e aproveitar para lhe dizer que gostava que ela pusesse o Marco Paulo a tocar, que sempre foi o meu cantor preferido a seguir ao Roberto Leal ou ao contrário, sempre fiz confusão nesta preferência, mas as palavras não me saíam da boca, ficavam lá dentro ecoando pelo interior do corpo e só eu as ouvia.

Aproveitei pois para pôr a minha conversa comigo mesmo em dia: não tinha assim grande coisa para dizer a mim mesmo, estávamos sempre juntos eu e eu pelo que as novidades eram quase nenhumas, o assunto esgotou-se rapidamente e ali fiquei de braços cruzados, recostado no almofadado aldrabado (afinal aquela coisa é rija pra burro) a ouvir as conversas e reparando que se falava de tudo um pouco: desde o futebol até à política tudo vinha a jeito, e até algumas observações menos próprias sobre a minha santa mulher que pelos vistos tinha mais apreciadores do que eu alguma vez tinha pensado.

Até o parvo do Toquinhas (a gente chamava-lhe assim porque ele era mesmo parvo, um toquinhas) murmurou qualquer coisa sobre as trancas da moça e sugeriu até a possibilidade de vir a consolá-la, como se ela alguma vez precisasse de ser consolada: tinha-me a mim e chegava-lhe, ou melhor, já não me teria a mim mas chegava-lhe na mesma. Ou não chegava? Não sei o que dizer e não estou para me preocupar com isso agora. Quem cá fica que se desenrasque...

Quando o cangalheiro (técnico mortuário para os ignorantes) trouxe os seus ajudantes e agarrou no esquife (mesmo morto não perdi o vocabulário) e me meteu então no carro pensei que estava safo e que poderia finalmente ir descansar em paz. Erro meu, e de todos, penso eu. O trânsito estava uma desgraça, levámos quase uma hora para chegar ao local do depósito e ainda por cima os homens tinham-se atrasado na escavação e iam mais ou menos a meio quando chegámos, estando a campa rasa (como constava dos meus desejos) meio cheia de terra e meio cheia de água.

Mais uma hora de espera, uma descida algo acidentada - e logo ancharcada - à cova e depois foi só tapar: isso já foi rápido porque uma série de marmanjos, alegadamente meus amigos resolveram ajudar os homens que têm por função exclusiva fazer isso e vá de me meterem terra para cima.

Eu marquei-os todos: aqueles que deitavam pequenas mão cheias de areia e os outros que pareciam ter pressa de me ver tapado e que utilizaram os pés para empurrar a terra em quantidade, como se estivessem chutando no futebol, apesar da lama. Mas lá fiquei e não sei se lá estou porque nesta vida nunca se sabe se um gajo renasce, se renasce no seu próprio corpo ou num outro corpo e se renasce na sua pessoa ou numa outra pessoa.

Pode até acontecer que se ressuscite ao fim de um dado tempo, também dizem por aí isso. Mas ressuscita-se ao fim de quanto tempo? Uma hora, um dia, um ano, uma eternidade? Não sei exactamente quanto tempo é preciso, nem para uma coisa nem outra e nem sei se renasci ou não ou se estou ressuscitado e não sei.

Esta incerteza matar-me-ia mesmo depois de morto pelo que resolvi vir aqui ao blog perguntar o que é que vão ler agora na Páscoa!



07/09/2008
0 Poster un commentaire

Inscrivez-vous au blog

Soyez prévenu par email des prochaines mises à jour

Rejoignez les 2 autres membres