O caso da traulitada

Eu estava deitado, quer dizer, na posição horizontal, mas não estava numa cama embora devesse estar porque já eram horas. Não sei exactamente que horas eram, quer dizer, não sei ao minuto ou mesmo à hora, mas que era tarde, era. Aliás e lembro-me bem disto, o clarim do quartel vizinho já tinha tocado havia uma data de tempo a anunciar a hora de recolher, que é aí por volta das 10,30 da noite e eu estava ali, deitado, havia uma eternidade.

Embora também reconheça que o tempo passa mais devagar quando não se sabe o tempo, quer dizer, quando se espera ou mesmo quando não se espera já nada, pelos meus cálculos talvez fosse para aí uma hora da manhã, mais coisa menos coisa. Os homens do lixo passam por volta da uma, perto da minha casa, que não devia ser muito longe, e não tinham passado ainda ali, mas deveriam estar a chegar, pensei eu.

E lá estava eu deitado, no chão frio naquela noite de Outono que já ameaçara chuvada pelo menos duas ou três vezes deitando uns pingos de aviso. E isto, tanto o frio como a chuva mesmo pequena eu achei estranho, porque em princípio deveria ser verão. De facto vestia umas calças daquele tipo ganga, com divisória ao meio da perna que dá para fazer dois tamanhos de perna e tinha uma camisa aos quadradinhos, de manga curta, daquelas fininhas, de saldo ainda por cima.

Não caí por mim mesmo, não estava com os copos, coisa que não faço, mas estava deitado e alguma coisa ou alguém me tinha deitado abaixo. Teria eu tropeçado e caído mesmo mal!? A rua era escura como bréu, tinha uma calçada daquelas que não vêm calceteiro há séculos e a chuva molha parvos que caíra tinha-a deixado molhada o suficiente para fazer brilhar o solo cada vez que passava um carro nas ruas perpendiculares.

E em princípio deveria ser Verão, repito, deveria haver gente em barda passeando pela rua, mesmo àquela hora, porque era sexta-feira ou sábado, não sei bem, mas era um dia de movimento e fora esse movimento que me levara até ali.

Durante o tempo em que estive assim, deitado, tentei deslindar a coisa mas a cabeça doía-me muito, do lado direito de quem me visse de frente e do meu lado esquerdo. Devo ter levado alguma traulitada, tinha pensado, mas não me lembrava de nada, mesmo nada.

Tinha entrado na rua, isso lembrava-me e era certo senão não estaria ali, tinha-me despedido de alguém de que não me lembrava quem era e estava a ver agora melhor que nunca como era escura aquela rua.

Nem sequer me recriminei por isso, por ter tentado atalhar caminho indo por aquela rua, estava simplesmente cansado, mesmo estando deitado, e embora não sangrasse, não via sangue nem no corpo nem nas mãos, sentia-me imobilizado, sem razão aparente. Acho que me sentia sobretudo mais deprimido do que cansado: estava naquela situação em que não nos aparece um solução porque não nos esforçamos para a encontrar e eu não tinha, simplesmente, vontade de me esforçar. Estou deitado - devo ter pensado - vou tentar que o tempo me deixe recompôr e depois logo se vê.

Mesmo deitado, e doendo-me a cabeça, acho que era capaz de andar, podia muito bem levantar-me, já estava ali havia que tempos e estava perto dos contentores do lixo, normalmente mal frequentados, por ratos, baratas e outros bicharocos que adoram os restos, o lixo, a porcaria, mas isso não me incomodava, quer dizer tal perspectiva nem sequer me bulia.

Estou a contar esta história alguns dias depois de me ter acontecido o narrado, mas espero que reparem que estou a transmitir de forma tão fiel quanto possível aquilo que sentia na altura. Não sabia de nada, não deitava sangue nem da cabeça que me doía, mas achava que tinha levado uma traulitada, que tinha tropeçado,se calhar, e que aquela sombra ali que se mexia era um rato ou um gato ou um cão mas nunca as três coisas ao mesmo tempo, como é claro, fazendo o resumo.

Agora que vejo a coisa passados esses dias, e que posso raciocinar de uma forma mais explicíta e mais elaborada na reflexão o que me incomoda sobretudo é o facto de me lembrar que me não lembrava de quem me tinha despedido à entrada da rua escura e que, estranhamente, continuo a não me lembrar.

Ou seja, eu lembro-me, mas não me lembro concretamente: sei que era uma senhora simpática com um cãozinho que andava a alçar a perna por ali. O cãozinho, daqueles feios como Jagodes, belfo, deu uns latidos roucos na minha direcção e ela chamou-lhe "menino feio!", o que não o deveria ofender, penso eu, porque concerteza que havia espelhos na casa onde ele vivia. Depois conversámos um bocado.

Sei que o assunto versou não sobre cães, mas sobre o facto de nos conhecermos, não propriamente dali, penso, mas de já nos termos encontrado algures. Palavra puxa palavra estivemos ali um bom bocado, com o cão primeiro sentado na relva, depois deitado e por último ressonando, por isso deve ter sido bastante tempo.

Ora, seria normal, e mesmo esta coisa das amnésias selectivas tem uma selecção desconhecida mas mais ou menos lógica, que eu, lembrando-me de quase todos os detalhes (cão sentado, cão deitado, cão ressonando) me lembrasse, já não digo da conversa que se adivinha facilmente ser daquelas que entram por um ouvido e saem pelo outro, mas do raio da dona do cão e não me lembrava e não me lembro ainda hoje.

Até porque a coisa é importante porque quando os homens do lixo passaram e como eu estava a cerca de dez metros de um contentor e próximo de uma caixa de cartão tamanho de um frigorífico deitado, viram-me, acharam que eu não estava bem e o condutor acabou por comunicar com uma ambulância e com a polícia, não forçosamente por esta ordem e depois quiseram levar-me ao hospital mas depois também acharam que bastava trazerem-me a casa, esta casa onde estou agora, escrevendo este pobre texto.

Após análise sumária pela polícia não ficou esclarecido se eu me tinha simplesmente estatelado e batido em qualquer coisa e desmaiado ou se tinha sido posto ko com algum objecto contundente empunhado por alguém.

Também ninguém viu (polícia e bombeiros) porque tal poderia ter acontecido, a agressão: não me faltava nada na carteira (a não ser o dinheiro que acharam ser pouco mas era mesmo assim), nem os cartões de débito, nem nada. Até o Bilhete de Identidade, o Cartão de Contribuinte, de Eleitor, da Caixa, de Utente, da casa das fotografias, da lavandaria estavam ali, dentro da carteirola. Até descobri que tinha lá coisas que não sabia que tinha lá e que andava à procura em casa havia que tempos.

Mas, depois de tudo arrumado, quer dizer, depois de estar em casa, onde bebi um chá daqueles de saqueta, pingado com leite magro (como é costume) e de ter tomado um ou dois comprimidos para as dores sob promessa de ir ao médico se não me sentisse melhor, continuei a pensar naquela que então começou, para mim, a ser "o raio da mulher" de quem não conseguia lembrar-me.

Primeiro porque a gente tinha conversado sobre não sei o quê e depois porque a senhora (o raio da mulher), bastante franzina por sinal, tinha partido de regresso a casa, tendo eu ficado a vigiar a rua até ela entrar numa casa térrea, donde me agradeceu a atenção por vigiar o seu bom percurso com um adeus manual.

Mas naquela rua todas as casas eram térreas, e do cão pouco me lembrava: sabia que era branco, pequenino, que levava uma trela, que era feio como tudo, mais nada. Por isso, e sem saber bem qual a importância que isso poderia ter para o meu caso, se é que havia um caso que merecesse esse nome, resolvi passados dois dias, tentar saber alguma coisa naquela rua, pelo menos para situar a senhora e perguntar-lhe se ela eventualmente tinha visto na rua algo ou alguém de que eu não me tivesse apercebido.

Sabia que a casa era mais ou menos ao meio da rua e as hipóteses de errar eram para aí de três casas num renque de talvez vinte ou trinta casas todas iguais para mim e quase iguais entre si, diferindo talvez nas cores das portas e janelas, da pintura da parede, etc. Bati na primeira casa que achei poder ser e atendeu-me um velhote que também tinha um cão, todo branquinho, que até veio atrás dele à porta, que também era feio como tudo (o cão), belfo também e tinha uma filha que vivia com ele mas que naquele momento não estava em casa. Se eu esperasse, talvez ela viesse entretanto...

Mas quando lhe perguntei se a filha teria eventualmente ido passear o cão à noite dois dias antes ele disse-me que não senhor, que quem passeava aquele exemplar era ele e que só estando doente isso poderia ter acontecido. Ora a última doença que ele se lembrava de ter tido tinha sido uma gripe e isso já havia seis meses.

Bem, vocês não vão acreditar, mas percorri as trinta e duas casas (eram 32), utilizando o sistema de uma abaixo, outra acima, tendo por refência primeira aquela que tinha visto inicialmente e em todas elas havia um cãozinho pequenote, branco, feio mas que umas vezes era passeado durante o dia, outras à noite pelos donos homens e só num caso havia um que era passeado à noite por uma senhora de cerca de sessenta anos que não era seguramente aquela semi-jovem com quem eu tinha falado na noite do meu incidente.

Não posso ter-me enganado na rua, a outra ao lado tinha prédios semi novos de vários andares (dois e três para ser mais exacto) e a seguir a isso era um género de blocos de apartamentos com pelo menos dez andares cada um. Afinal o que se tinha passado?! Teria eu vivido um daqueles estranhos momentos de passagem para dimensões diferentes em que o espaço tempo se contrai ou se distende, não sei bem (contrai-se ou estica-se?).

Não sei, ainda não sei e esta questão atormenta-me, há vários dias que me atormenta. Primeiro, atormenta-me o facto de ter falado com uma senhora que levava um cão e não me lembrar dela. Segundo por ter levado uma traulitada ou por me ter estatelado batendo em qualquer coisa e ter ficado assim no meio entre o mais para lá e o mais para cá e depois por ter ido a uma rua onde toda a gente tem cãezinhos brancos feios e nenhum ser aquele que eu procuro procurando a sua dona o que é francamente estranho: 32 casas na mesma rua todas com cães brancos pequeninos e feios e nenhuma tem o cão que me interessa.

A situação, para além de esquisita - esquisita é favor, eu acho que isto é surrealismo mesmo, daquele puro - não me sai da cabeça e já lá vão três dias e não vejo forma de a esclarecer porque acho que já tentei tudo e aquilo que tentei ainda me trouxe mais confusão.

O que mais me chateia, sinceramente, é o absurdo de havar 32 casas com 32 cães brancos pequeninos, feios (alguns babavam-se descaradamente) e nenhum deles poder ser aquele que eu procuro para encontrar a sua dona e reatar em termos memoriais o meu percurso dessa noite para tentar pelo menos fazer uma ideia do acontecido.

Caí ou levei uma traulitada de alguém, eis a questão...dói-me a cabeça cada vez mais, estou cada vez mais confuso e agora só espero que a porra do despertador toque já porque isto está a tornar-se um demasiadamente demorado pesadelo.

 



03/11/2008
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