O gato preto

 

Daquela vez subi as escadas em càmara lenta. Sentia-me verdadeiramente cansado e por mais estranho que pareça quando cheguei lá acima (eram dez andares sempre a subir) senti-me como se tivesse subido os 180 degraus da mesma forma normal dos outros dias.

O facto de ter escolhido o sistema da câmara lenta se resultou resultou muito pouco e senti-me frustrado, não com aquela frustração corrente do dia a dia quando as coisas não correm bem mas senti antes uma frustração revoltada dizendo para mim mesmo que não tinha valido de nada aquele trabalho de subir os degraus em câmara lenta e senti-me irritado porque cheguei à conclusão que tinha feito figura de parvo, não que alguém me tivesse visto, senão o porteito, mas deveria ter parecido mesmo estúpida aquela coisa de subir degraus em câmara lenta.

Sabem como é, a câmara lenta, e foi isso mesmo que eu fiz: quando se filma aumenta-se o tempo de exposição do fotograma ou fazem-se mais fotogramas para o mesmo tempo e no meu caso eu subi cada degrau com esse aumento de tempo pensando que assim me cansava menos mas nada disso: praticamente cansei-me o mesmo, ou até mais, não sei, com a agravante de ter de estar a calcular mentalmente o tempo tão exacto quanto possível de cada gesto, de cada avanço de uma perna, depois de outra e o balanço de um braço e depois de outro.

Não aconselho a ninguém, agora que sei, agora que descobri isso, a subir degraus ou mesmo a andar em câmara lenta. Não resulta! O esforço é o mesmo só que dividido por mais tempo e é assim como misturar água doce na água salgada: dilui-se o sal mas a quantidade do resíduo salino é igual. Que estupidez a minha!! Devia ter pensado nisto antes...

Dito isto quando cheguei a casa dela estava não só mais derreado do que estava quando comecei a subir, como estava irritado e sentia na pele da face agora crestada a falta do ar condicionado dos outros dias e aquela aragem pequena mas refrescante que o contínuo mandava do rés do chão rodando o botão para o lado do sinal mais por ser para mim.

Era bom cliente, eu, naquele prédio e o porteiro sabia-o mas desta vez pareceu-me ausente não de corpo, porque ele estava lá, com a sua farda cheia de medalhas e galões à tropa, mas porque estava e não estava no seu posto.

Ou seja, o corpo dele (e os galões e as medalhas) estavam lá plantados no sítio do costume, atrás de um balcão coberto a formica, mas o espírito, a alma, o sopro vital dele, aquela coisa que distingue as pessoas vivas das pessoas mortas, a respiração, o bafo, andavam nos limiares do coma.

Disse-me depois a Arminda que lhe tinha falecido um gato, um pretinho que frequentava o terceiro andar e que eu não devia conhecer porque ele nunca ia para as escadas mas eu disse-lhe que não senhor, que era capaz de ser aquele que eu tinha visto na última vez que lá tinha estado entre o primeiro e o segundo andar.

A Arminda disse-me então que sendo assim era bem provável que eu até o tivesse visto no dia da sua morte porque ele, o porteito, tinha encontrado o seu corpinho desfalecido precisamente na zona do rés do chão, entre as caixas vazias de uma arrecadação, entalado (coitado) entre cinco resmas de papel A4 e uma impressora de fita de carbono que tinha tombado de uma estante metálica daquelas cai não cai.

Mas deixemos isso, disse-me ela enquanto me enchia um copo de vinho do Porto para me fazer subir a alma, disse ela, coisa que eu bem precisava, de uma alma subida depois daquela subida e peço perdão pela redundância.

Os processos de luto do porteiro eram assim mas este era mais profundo, acrescentou-me a Arminda, e ela já lhe tinha conhecido vários lutos felinos que lhe permitiam agora pronunciar-se da forma peremptória como o fazia.

Ele tinha um gato por andar, o que perfazia catorze porque eram treze andares mais o rés do chão e por cada gato tinha um amor sempre especial. O que morrera agora, um dos pretinhos, era especial como o eram todos os outros, não por ser preto, havia mais pretos (seis para além do defunto), mas porque - no dizer que ele tinha dito à Arminda -  era um gato que lhe tinha sido oferecido por uma pessoa que ele considerava especial e de certa forma pode dizer-se agora, sem grande dificuldade, que ele, porteiro, via talvez naquele gato um pouco daquilo que via na pessoa que lho oferecera.

Amor (?) pela pessoa ou simplesmente um respeito respeitoso ? - Perguntei eu à Arminda quando já ia no segundo copo de Porto. Ela não conhecia a pessoa, nem sequer sabia se era homem ou mulher e o porteiro nunca fora além daquelas singelas palavras: fora-lhe oferecido por uma pessoa de quem ele muito gostava e ponto e vírgula para não dar o ar abrupto do ponto final.

Quando a Arminda tentava puxar dele um pouco mais, naquela curiosidade quase natural para tentar descortinar algo mais daquilo que haveria para dentro da farda castanha, dos botões igualmente castanhos, das medalhas coloridas e dos galões dourados ele desviava a conversa dizendo que aquele gato (o agora falecido) não lhe dava nenhuns problemas praticamente desde que viera para aquele prédio.

Tinha - dizia ele como se ela (Arminda) não soubesse - a sua caixinha próximo da janela da sacada onde fazia as suas necessidades, uma caminha em pano acolchoado com um padrão de florzinhas brancas sobre fundo azulado (o que não condizia com o gato - ciciou-me no momento a Arminda com alguma ironia) e duas tijelas também junto à janela: uma com água e outra com ração que comia parcimoniosamente. "Um autêntico passarinho a comer!" - dizia para logo acrescentar que andava desconfiado que alguém lhe dava de comer mas que ainda não tinha conseguido saber quem era, embora desconfiasse daquele puto da fracção H.

Normalmente o porteiro (é melhor dizer o nome do homem agora) senhor Jorge Kovac em anteríores períodos de luto felino (que eram à média de dois por ano - precisou a Arminda) desinteressava-se das coisas e não valia a pena insistir com ele porque ele olhava-nos (disse ela) com os olhos vazios, abanava a cabeça como se tivesse percebido tudo mas no final não tinha percebido nada porque não conseguia perceber.

Mas desta vez, no caso deste grato preto, o processo estava a prolongar-se no tempo e na intensidade por razões que embora se admitissem dificilmente se suportavam sobre a estreita mas sólida base do minimamente exigente profissionalismo, do brio e até do despego pelas coisas pessoais pelo menos durante as horas de serviço.

E eu que o dissesse, da falta de profissionalismo do Kovac, pois tinha tido a recente e dolorosa  experiência própria subindo os dez andares de escadas sem assistência suplementar de ar condicionado - ainda por cima tinha-o feito estupidamente em câmara lenta - coisa que nunca tinha acontecido no verão e nem sequer no inverno, não a câmara lenta que tinha sido a primeira e a última vez que eu a utilizava em jurado.

Na altura do inverno o aquecimento também me era facultado em suplemento tal como o refrescante ar extra me era facultado no verão, devo precisar, embora algumas vezes tivesse razão de queixa porque como qualquer pessoa sabe através do esforço os corpos aquecem e a partir do quinto piso o ar quente tornava-se excessivo. Mas sempre perdoei ao Kovac esta sua falta de sincronização temperamental optando por ir tirando o sobretudo, o casaco, a blusa de gola à barco e chegando a casa da Arminda em camisa com gravata já desabotoada.

Ora o J. Kovac tinha a seu cargo 14 gatos, duas mortes em média anual e embora possa parecer pouco humano seria de exigir, na minha opinião, que ele tivesse já algum calo em relação à morte natural dos seus felinos que se puderia e deveria repercutir sobre esta última morte mesmo sendo inopinada, acidental e brutal, coisa que assim dita pode parecer absurda porque as mortes, salvo raras excepções, são todas inopinadas.

Mas e conforme vimos acima, e se foi verdadeira a nossa ilação de que eu tinha visto o gato preto na última vez em que lá tinha estado (em casa da Arminda) e tendo em atenção que eu não frequentava os seus aposentos senão uma vez por semana, teremos de tirar duas conclusões que interessam ao desenrolar da história.

O gato preto tinha falecido (coitado) provavelmente no dia em que eu estivera em casa da Arminda pela última vez antes daquela, quer dizer, havia oito dias arredondados e se as coisas se tinham passado como a Arminda aventava e se a fatalidade foi detectada nesse mesmo dia (oito arredondados atrás) isso queria dizer que o Kovac estava naquele estado havia sete, oito dias, sensivelmente.

Ora isso era muito tempo de luto e alheamento social mesmo que houvesse como fundamento o caso de um gato especialmente querido. Aliás a literatura médica não trata desta questão com detalhe bastante , mas será de estipular razoavelmente para o Kovac e tendo em atenção a sua envolvência com abundantes felinos cerca de dois, três dias no máximo de luto sentido pelos gatos.

Assim sendo e fazendo uma análise apressada e muito sumária e sabido que a questão do luto do Kovac já ultrapassava as marcas da razoabilidade e atingia patamares até ali desconhecidos propus eu à Arminda que tratasse de se inteirar mesmo indirectamente que fosse junto dele quanto tempo mais tinha o Kovac em previsão manter aquele estado lutuoso, tendo em vista, embora possa parecer cínico da minha parte, escalar nova visita à Arminda para uma data posterior à sua libertação depressiva.

Eu utilizava os serviços da senhora, já entradota como é normal nestas coisas, o pessoal jovem já não faz destas coisas, só querem empregos de escritório e sobretudo empregos e não trabalhos. Ora a Arminda trabalhava e meu deus como ela trabalhava: aquilo era uma máquina autêntica, salvo seja, porque no seu métier explorava o serviço personalizado, razão pela qual eu lá ia também desde havia cerca de dois anos já.

Estávamos neste bate papo sem termos entrado ainda em quaisquer preliminares sobre aquilo que ali me levava quando ouvimos um urro, um verdadeiro urro, daqueles à urso castanho mas que se tivesse cor seria negro. O urro subiu as escadas para se deter para regresso mais silencioso e menos escurecido nos patamares do 13º e último andar. Era do Kovac, só podia ser ele quem estava na origem do berro seco e grosso e eu, com mais um suspiro contrariado de imediato tirei a mão do cinto das calças que ia começar a desapertar.

Estava feita a tarde, nada mais se puderia acrescentar ali na casa da Arminda, tinhamos os planos semanais furados, já abalados antes pelo meu cansaço e suprimidos agora pela necessidade de dar atenção ao rompante grito. Aquela tranquila casa onde moravam dezenas de pessoas com 14 gatos (fora os particulares de estimação, cães e pássaros cantantes ou não ) tornou-se naquele dia naquilo que nunca tinha sido.

Durante a cerca de meia hora em que eu ali estava tinha sofrido, sabido e ouvido mais do que durante o somado tempo das minhas anteriores visitas à Arminda. Depois, descer os dez andares soube-me a um recuo inglório em campo de batalha sem sequer ter desembainhado a espada, passe a metáfora e ver o Jorge Kovac chorando copiosamente sobre o balcão de formica foi a gota de água que fez transbordar o já pequeno vaso da minha paciência.

Mas a coisa era grave, mesmo, tenho de reconhecer agora: alguém, por artes sádicas que só aos inumanos são atribuídas após a exemplar e irada lição de Moisés aos adoradores dos bois e outras imagens  alegadamente sagradas, alguém, repito, tinha tomado a iniciativa de deixar um envelope com folha de letras de jornal coladas ao Kovac afirmando, ainda por cima em letras vermelhas, que fora ele (o anónimo) o autor do abanão na estante que fizera cair a impressora de fita em cima do seu gato preto o que transportava o aparente acidente para o campo da vingança pessoal.

Ressalvando a violenta morte do pobre do animal que me ficou a roer na consciência durante bastante tempo (meses, mesmo) afastei-me por isso da Arminda, e por carambola do Kovac nunca mais vindo a saber nada desse pessoal. O que mais me chateia é conviver num ambiente cheio de problemas de merda!



23/08/2008
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