O nascimento do Rã vulgo Grenouille

A história foi-me contada assim e não ponho nem retiro nada àquilo que me foi dito. Há pessoas que quando contam um conto acrescentam um ponto mas eu não sou desses, sou a excepção a essa regra arbitrariamente colocada por alguém que fazia da mentira ou do acrescento sobre o contado profissão, métier, job e que provavelmente ganhava algum com isso.

Já Virgílio, ou foi o Horácio (?), dizia que ia contar sobre as tragédias gregas a sua versão, que essas tragédias eram todas uma grande aldrabice, mas que ele as ia envolver com um tal e tão espesso manto que as pessoas teriam um enorme prazer em lê-las, escritas pela sua pena.

Lançava então o Virgílio/Horácio (agora não dá para confirmar quem foi o gajo que disse isto mas isso é de somenos importância) o tema da sobreposição da forma ao conteúdo: as pessoas iam ler as tragédias gregas não pelo que elas significavam mas sim pela roupagem que ele lhes ia meter. Breve, não se apalpava a mulher, olhava-se para a sua vestimenta o que não deixa de ter o seu interesse quando se dá rédea solta à imaginação.

Neste caso que me contaram, o do nascimento do Rã (se tivesse nascido em França era Grenouille) a coisa passou-se assim: havia o Rã e uma vaca. A mãe do Rã e a vaca (com letra pequena) estavam ambas prenhes, grávidas, de esperanças no caso da senhora e sem esperança alguma no caso da vaca.

Foi chamado o veterinário da aldeia, um ser rubicundo que recebia à colheita (actualmente é no fim do mês, para quem não sabe) que presto agarrou na mula, colocou-se em cima dela e deslocou-a à força de chibata em direcção à quinta do pai e da mãe do futuro Rã (sobre este nome direi qualquer coisa mais à frente) e isto, no que se refere ao veterinário porque o trabalho não abundava, a agricultura e a pecuária estavam em crise como sempre têm estado e o trabalho de matar moscas com uma espátula de plástico não enche barriga.

Na mesma altura e como se tivessem combinado e como se isso fosse possível pois que com a Natureza não se combina nada, a mãe do futuro Rã entrou em contrações: as vacas não têm isso ou se têm ninguém lhes chama isso porque uma vaca é uma vaca.

Chamaram então para a senhora uma parteira da aldeia, profissional competente ainda que não encartada mas naquele tempo não se ligava muito a títulos...aliás penso que o veterinário também não era veterinário de facto, desenrascava-se no métier, tinha até estatisticamente uma percentagem de sucesso nas suas intervenções superior à média europeia e morava logo ali, a dois passos da quinta, ou seja, cerca de cinco quilómetros em caminhos de terra batida.

Os "colegas" chegaram quase ao mesmo tempo: cumprimentaram-se, trocaram algumas impressões sobre os últimos casos, meteram moedas na máquina e fizeram sair dois cafezinhos e por ali ficaram em cavaqueira até que o futuro pai do Rã berrou lá de cima e a vaca mugiu aterradoramente.

A coisa parecia estar encaminhada: o pai do Rã ficaria com um filho (naquele tempo não havia ecografias mas a aposta era sempre num muchacho) e a quinta, paupérrima, diga-se de passagem, ficava com mais um vitelo cujo destino ainda não estava decidido embora já tivesse sido objecto de discussão acalorada entre o casal: venda, venda ou venda eram as três hipóteses em cima da palha.

No entanto, e passando à frente que isto já vai longo embora vá a metade, o Rã estava preso pelo osso da rabadilha conforme constatou a competente parteira que tinha lido os Retalhos da Vida de um Médico do Fernando Namora e sabia assim que só podia ser isso que impedia o puto de sair. A vaca não estaria na melhor mas ia-se desenrascando à força de puxões e o igualmente competente veterinário não tinha problemas no seu afã.

O problema só existia pois com o Rã e era um problema bicudo que todo o saber da competente parteira não conseguia tornear: deu uma volta (tipo translação e não de rotação, não confundir) e mais outra ao que aparecia do Rã: eram as coxas e as perninhas porque o moço resolveu sair de traseiro (agora já sabem porque é que o moço se chamou de Rã!) e nada: em dado sítio a coisa embatucava e o tal osso da rabadilha teimava em não deixar descolar o ainda feto.

Decisões rápidas, naquelas condições, são as que há: não se podem fazer milagres no meio dos montes e nos descampados sem vivalma sabedora que acuda. A parteira pediu a ajuda do "colega" que a franqueou, a ajuda, mas entretanto tinha um trabalho entre mãos. Desenrascados como já pouco se encontra hoje e colocados perante a possibilidade de só conseguirem fazer com que um dos dois rebentos visse a luz do dia logo ali decidiram fazer transportar a senhora para o estábulo uma vez que levar a vaca para o quarto não era aconselhável e até era um pouco dificíl.

O pai do Rã, atarantado como estão normalmente todos os pais que vão ser pais, apesar de tudo improvisou uma maca levantando a armação de ferro e o colchão e com a ajuda da parteira lá conseguiram transportar a senhora para o estábulo. E depois foi um ver se te avias: a parteira puxava pelo bezerro enquanto o veterinário metia toneladas de vaselina no buraco de saída do Rã e três ou quatro "forças" depois mais alguns gritos de dôr da senhora acabou então por se ouvir o choro fininho do Rã ao mesmo tempo que se ouvia o mugido do bezerro.Naquele mesmo instante a parteira irritada mas aliviada declarou que nunca mais iria ler o Fernando Namora na sua vida.

Ora, envolvido como tenho estado na contagem destas peripécias não tenho descrito os ambientes o que é importante para o desenvolvimento da questão: a família do Rã era pobre mas limpinha. O quarto em casa não sendo um 5 estrelas estava contudo bem arranjado. Já na estrebaria e estábulo conjunto as coisas se passavam de uma outra forma. Os animais "m.erdavam" aos quilos e durante os últimos dias, ocupado a ajudar a mulher de esperanças, o pai do Rã tinha descurado um pouco a limpeza da mesma que neste caso acabava por fazer muita trampa acumulada.

Perante este facto odorífero os efeitos normalmente são radicais sobre os recém-nascidos: ficam sem cheiro, é isso. As papilas olfactivas perante uma agressão m.erdosa encolhem-se e de tanto se encolherem acabam por se afundar algures nos tecidos envolventes. Por isso desde já vos digo, que, e conforme me contaram, é bem possível que este facto perdure e se repercuta sobre a personalidade do Rã, mas isso é uma outra história que deixo ao meu amigo Suskind o cuidado de vir a contar um dia.

Esta primeira parte é de borla...



26/06/2008
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