Ser feliz


 
 

Para mim ser feliz não é só um estado de espírito interior, ou pode ser em certa medida, mas essencialmente ser feliz é demonstrar que se é feliz, dizê-lo, por palavras, gestos ou expressões faciais ou mesmo corporais, e para ser mais preciso, fazendo para outros verem aquela figura que tanta piada tem que é dar um saltinho em corrida e tocar ambos os calcanhares no ar.
 
 Talvez por isso, por pensar que a felicidade só existe pelo menos plenamente ou próximo disso quando é expressa, e por achar que é fácil uma pessoa estatelar-se quando dos martelinhos aquilianos ou calcâneos, comecei a identificar uma pessoa feliz à ideia que se extrai daquele quadro de Picasso em que se vêm duas Balzaquianas correndo nuas e de cabelos soltos ao vento por uma praia que se supõe estar deserta, o que sempre é mais fácil de conseguir e pode ser feito por qualquer pessoa, mesmo do sexo masculino, embora a idade e a rigidez ou a flacidez muscular possam contar na qualidade do expressado.
 
 E isto, este facto simples - que resulta da minha estrutura intelectualizada e conhecedora - de pensar em duas mulheres correndo com tudo ao léu (ou quase tudo porque só se vê a parte da frente) expondo-se ao vento fresco da matina e ao olhar atento do pintor leva-me a pensar porque razão a praia, por um lado, está deserta, e segundo e por outro lado como seria o sucesso de Picasso se me pintasse a mim, com a musculatura totalmente ao léu, cabelo cortado curto, e sorriso rasgado nos lábios.
 
 Um pouco menos pesado que as senhoras (aliás chamam-me o levezinho) de corrida compasssada e levantando pequenas e delicadas chapinhadas de água biqueira quarenta e cinco, de cotovelos arqueados para facilitar a vida ao oxigénio, lá estaríamos eu e a minha felicidade, estampados em tela em qualquer galeria de qualidade como demonstração daquilo que é a minha felicidade e a felicidade de todos ao fim e ao cabo.
 
 Símbolo da felicidade seria eu, muito mais que as duas senhoras que se contentam, quanto a mim a correr sem destino definido e cuja função meramente expositiva o pintor pensou mas que a história mascarou.
 
 Não me venham dizer que o Picasso, por muito artista que fosse, não pensou simplesmente em fazer um sexy low, coisa que vende sempre e que se pode ter em casa sem ofender muito o visitante, mas do qual se pode extrair aquilo que se quiser: duas lésbicas correndo para o coucher, duas naufragas divisando um náufrago ao fim de 15 dias de isolamento numa ilha, duas pelintras felizes por o serem, ou mesmo duas voluntárias pagas pelo Pablo vindas de uma qualquer rua esquisita do Paris de então.
 
 Por isso, e não só dada a dúvida, mas ainda pelo facto de a praia estar deserta (mero cenário imaginado pelo pintor com poster em fundo?) acho que a expressão da felicidade terá sempre de ser conhecida e saber-se, sobretudo, porque é que a pessoa ou as pessoas estão felizes e até que ponto não se trata de uma "felicidade" artificial, cinematográfica, comprada...como eu penso ser o caso de Picasso.
 
 As mulheres nuas, pintadas naqueles inícios do século tinham todas o nome de Anónima, na sua grande parte eram recrutadas não entre estudantes de arte ou jovens de virgindade confirmada, mas sim, de uma forma geral entre as bailarinas de cabaret ou alternantes e, para ser muito franco, assim, nestas condições a ideia da felicidade aguenta dificilmente um exame psicológico mais profundo porque a felicidade demonstrada não tem preço mesmo que o preço seja vantajoso e logo é uma "felicidade" falsa, deturpada...
 
 Por isso sinto-me na obrigação de retirar estas senhoras da minha ideia da felicidade demonstrada e sinto-me igualmente na obrigação de me colocar a mim mesmo na tela, ainda que com tanguinha ou mesmo com uma mais tradicional folha de videira.
 
 Vejam-me assim, correndo pela praia deserta, saltitando lateralmente por vezes para afastar os pés da gélida água espumarenta, vejam-me no perigoso acto de salto e junção atempada de calcanhares e acrescentando um sorriso aberto (quase a atirar para o parvo) e saberão, sem uma palavra, como me sinto hoje. Feliz, feliz, feliz!
 
 Porquê (?), podem perguntar, como se a felicidade não pudesse nascer de geração espontânea. Mas eu esclareço: estou feliz porque estar feliz me entristece e estou a precisar de uma porrada depressiva.



08/10/2007
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